terça-feira, 10 de março de 2009

Laranja

























A laranja que apodrecia. No chão da praça, no beiral da varanda. Laranja citrino ácido, tão doce já fermentado, podre podre. As cascas descascadas que me viste ver, os restos mortais que ficaram dissolutos no meio dos fungos cinzentos verdes que percebi teres visto. Duas laranjas, clementinas, tangerinas que interessa Eram cor de laranja como os raios de sol pintados a lápis de cor. Raios partam as gaivotas altivas Tivesse eu pena das pombas que se mostram quase todas feias velhas escuras sujas pernetas quase mortas, que me sobrevoam como se não existisse, contra mim, contra as barreiras de ar, contra os meus olhos que se baixam quando um reflexo de Raisparta as pombas se forma dentro deles, atrás, lá dentro, onde ainda vejo. As imagens formam-se e deformam-se e eu deito-me com a mão sobre a testa como quem está cansado de ver e quando quer é ver mais, ver para lá da pomba, através da pomba. Mas os olhos das pombas, os olhos das pombas, que hão-de ser como os das gaivotas, mas os das gaivotas, se um dia me dessem olhos de gaivota, que medo, olhar em frente sem ver em frente e ver os lados quando olho em frente quando me apareces e te olho de lado para te ver que estás à minha frente. Poupem-me. Eu não dava, não dava para gaivota. Podia atacas as pombas e matá-las, roubar-lhes a comida e ainda ficar a rir-me entre o manear nobre de arrogância doentia só porque quase pareço um pinguim do Atlântico e me radia a pinta vermelha do bico como os papagaios. Querem ser tudo e não me são nada. Patas de pato, olhos que metem medo e ainda têm mais medo do que o que metem. Já chega de falar destas aves citadinas. Ah sim, porque as gaivotas agora reinam no centro da cidade. Gosto tanto dumas como das outras. São ambas parvas.
Sabes o que eu penso quando vejo gaivotas? Penso em armadilhas estrondosas e que as façam gritar e gritar e assustar e bater as asas numa estapafurdice hilariante. Matar, matar ou não, apanhar, assustar, apetece-me tanto assustá-las quando as vejo. Saber se irão gritar alto e bom som com o susto, ou se se vão ficar como as pombas que levantam voo em bando repentinamente sem piar, que me assustam com o bater das asas. Muitas, assustá-las a muitas, cinquenta gaivotas assustadas num milésimo de segundo a levantar voo esbaforidas presas. Numa tentativa, maléfica tão maléfica, numa tentativa de voar, de se soltar, numa realidade que as prende, por uma pata, uma asa. As penas no ar as penas a saltar os gritos os movimentos bruscos de um arranque de voo empenhado, bicos no ar a bicar o ar a bicar pelo mar, presas presas, a esbarrar umas com as outras, com o chão, como um íman, é o centro que as prende, é a Terra. O mar morreu e o ar vai apodrecer como as laranjas, fungos, cinzas, prende-te à Terra. As cinzas vão ser tudo o que não for terra, vamos queimar, vamos arder, anda, que estás presa, estais presas, todas que sois todas e todos que não vos distingo pinguins cinzentos da boa vida. Vamos arder à superfície quando sois puxadas para o centro, núcleo que mata. Vamos todos ser as chamas e a cinza onde o inferno não existe e o céu também ardeu. Vamos, que a fermentação já acabou, tudo apodreceu. Vamos que já fomos que já fermentámos e nos ardemos sobre a terra e matámos a camada de cima que tinha vida, que já não tem, que já não há vida, já ardemos o combustível salivar todo e o sangue onde nos chafurdámos durante a vida, secou. A vida que ardeu, que nos queimou, matou, A vida mata, já deve ter dito o outro. A vida que foi o espaço de tempo em que a Terra morreu. Adeus, pássaros, que a terra vai absorver toda a vida que há-de matar.

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