Abatam-me, separem-me os destroços e vendam-me a quem me compre. Desinfiltrem-me a goela, por fim ácida, do trago à maçã verde que trinco. Masco-a para que a acidez me deforme as pupilas, me desfigure as bochechas e mas derreta, como dois frascos de tinta preta, vertidos. Arranquem-me os olhos, que mais não mereço eu ver, que nunca vi eu tal preciosidade, que não posso eu vê-la pela tortura que me dais; arranquem que se faz tarde, que morrerei pouco a seguir de desespero. Abri a pele e tirai-ma, que de toque já conferi eu o crime. Abri, abri, trago ali um bisturi, ali bem adentro do estojo elegante das ferramentas do esboço, bem adentro de um dos meus peitos. Esvaece-se o sangue, sim, percorre a linha infinitesimal da minha dor – os quarenta centímetros de pele que me restam até à superfície onde jazerei dentro em breve – e já quase se empoça no chão. Rasgai com mais força, que ainda suporto a dor, que ainda a suporto, que ainda a sinto e, se a sinto, fazei-ma sentir. Mais, mais. Rasgai como os tecidos que se esventram em linha recta pela coluna do encadeamento de linhas, com aquele som, - oh, aquele som – o som que dá vontade de aprender a produzir quando se é criança e se quer saber fazer o que não se sabe. E soubesse eu, após todo este centenário, fazer o que não sabia, soubesse eu fazer o que nunca soube, soubesse eu fazer o que quer que fosse, que não fosse, matar. No cegar das minhas meninas, ainda há dor. Puxai-me a pele por fim, de todo, puxai-me o pecado de sentir. Ainda me pertence a triste língua que um dia beijou, que um dia foi feliz sem poder ser, que ma acabastes de cortar, ah que sim me sangra a boca, que ma roubastes, como roubei eu os dias de quem ma quis. Roubei a vida de quem me quis roubar da dor e da solidão; ingrato animal que um dia se quis desfazer da dor, como se possível fosse alterar a sua fortuna, como se de um homem se tratasse. Sangra, sangra tudo e mais, mais que os outros, mais que todos juntos. Sê, agora, mais que os outros e despe as tuas veias para que todos vejam. Ou! Olhai que se vem aí o homem das muralhas de flores, das estevas mal regadas pela chuva que caiu salgada. Olhai que o tempo se vai a desenmerdar, finalmente. Abatam-me! Miserável criança que se esfrega em dor, ainda sinto. Afastai-me, não do mal, que o sou eu, da perfeição, do primor. Primogénito das maçãs verdes.
Sei que ainda falais porque vos leio, sem ler. Sei que desgrenhais dos vossos entres, o ódio emancipado. Curais a vossa sede com a minha destruição, mas deixai-me antes; deixai-me no inferno do que antes amou. Atirai-me, como rasgão de carne para putrefacção, para o leito. Os lençóis que mancho com a dor que ainda quase sinto, só porque os cheiro, só porque os conheço, só porque ainda lhe sei o amor que neles ficou. Amor que deixei, que deixastes vós, Senhora, como quem deixa neles a sua vida. Eu neles deixei a que tive, e deixo, agora e por fim, toda ela. Neles jazo, maldito pecador, ordinário crianço. Cheiro-os eu, ainda e por tão pouco mais, e mais queria não os cheirar, mais queria não saber que os são. Mas fizeste-mos chorar, por olhos que já não trago, no choro mais dorido que, de todo o sempre, me feriu. Eu sei que não é por acaso que aqui acabo. Eu sei que me abatestes por bondade àqueles que poderia, eu, um dia amar. Eu sei que tenho medo de te magoar.
Sei que ainda falais porque vos leio, sem ler. Sei que desgrenhais dos vossos entres, o ódio emancipado. Curais a vossa sede com a minha destruição, mas deixai-me antes; deixai-me no inferno do que antes amou. Atirai-me, como rasgão de carne para putrefacção, para o leito. Os lençóis que mancho com a dor que ainda quase sinto, só porque os cheiro, só porque os conheço, só porque ainda lhe sei o amor que neles ficou. Amor que deixei, que deixastes vós, Senhora, como quem deixa neles a sua vida. Eu neles deixei a que tive, e deixo, agora e por fim, toda ela. Neles jazo, maldito pecador, ordinário crianço. Cheiro-os eu, ainda e por tão pouco mais, e mais queria não os cheirar, mais queria não saber que os são. Mas fizeste-mos chorar, por olhos que já não trago, no choro mais dorido que, de todo o sempre, me feriu. Eu sei que não é por acaso que aqui acabo. Eu sei que me abatestes por bondade àqueles que poderia, eu, um dia amar. Eu sei que tenho medo de te magoar.