terça-feira, 29 de abril de 2008

Abatam a criança

Abatam-me, separem-me os destroços e vendam-me a quem me compre. Desinfiltrem-me a goela, por fim ácida, do trago à maçã verde que trinco. Masco-a para que a acidez me deforme as pupilas, me desfigure as bochechas e mas derreta, como dois frascos de tinta preta, vertidos. Arranquem-me os olhos, que mais não mereço eu ver, que nunca vi eu tal preciosidade, que não posso eu vê-la pela tortura que me dais; arranquem que se faz tarde, que morrerei pouco a seguir de desespero. Abri a pele e tirai-ma, que de toque já conferi eu o crime. Abri, abri, trago ali um bisturi, ali bem adentro do estojo elegante das ferramentas do esboço, bem adentro de um dos meus peitos. Esvaece-se o sangue, sim, percorre a linha infinitesimal da minha dor – os quarenta centímetros de pele que me restam até à superfície onde jazerei dentro em breve – e já quase se empoça no chão. Rasgai com mais força, que ainda suporto a dor, que ainda a suporto, que ainda a sinto e, se a sinto, fazei-ma sentir. Mais, mais. Rasgai como os tecidos que se esventram em linha recta pela coluna do encadeamento de linhas, com aquele som, - oh, aquele som – o som que dá vontade de aprender a produzir quando se é criança e se quer saber fazer o que não se sabe. E soubesse eu, após todo este centenário, fazer o que não sabia, soubesse eu fazer o que nunca soube, soubesse eu fazer o que quer que fosse, que não fosse, matar. No cegar das minhas meninas, ainda há dor. Puxai-me a pele por fim, de todo, puxai-me o pecado de sentir. Ainda me pertence a triste língua que um dia beijou, que um dia foi feliz sem poder ser, que ma acabastes de cortar, ah que sim me sangra a boca, que ma roubastes, como roubei eu os dias de quem ma quis. Roubei a vida de quem me quis roubar da dor e da solidão; ingrato animal que um dia se quis desfazer da dor, como se possível fosse alterar a sua fortuna, como se de um homem se tratasse. Sangra, sangra tudo e mais, mais que os outros, mais que todos juntos. Sê, agora, mais que os outros e despe as tuas veias para que todos vejam. Ou! Olhai que se vem aí o homem das muralhas de flores, das estevas mal regadas pela chuva que caiu salgada. Olhai que o tempo se vai a desenmerdar, finalmente. Abatam-me! Miserável criança que se esfrega em dor, ainda sinto. Afastai-me, não do mal, que o sou eu, da perfeição, do primor. Primogénito das maçãs verdes.


Sei que ainda falais porque vos leio, sem ler. Sei que desgrenhais dos vossos entres, o ódio emancipado. Curais a vossa sede com a minha destruição, mas deixai-me antes; deixai-me no inferno do que antes amou. Atirai-me, como rasgão de carne para putrefacção, para o leito. Os lençóis que mancho com a dor que ainda quase sinto, só porque os cheiro, só porque os conheço, só porque ainda lhe sei o amor que neles ficou. Amor que deixei, que deixastes vós, Senhora, como quem deixa neles a sua vida. Eu neles deixei a que tive, e deixo, agora e por fim, toda ela. Neles jazo, maldito pecador, ordinário crianço. Cheiro-os eu, ainda e por tão pouco mais, e mais queria não os cheirar, mais queria não saber que os são. Mas fizeste-mos chorar, por olhos que já não trago, no choro mais dorido que, de todo o sempre, me feriu. Eu sei que não é por acaso que aqui acabo. Eu sei que me abatestes por bondade àqueles que poderia, eu, um dia amar. Eu sei que tenho medo de te magoar.

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